"Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo..."

Sunday, August 17, 2008

A Detalhista Desconhecida


Okay, ela me lançou um olhar. Uma mulher dessas me lançou um olhar. E ela continua me olhando. O que ela pretende com isso? Eu não tenho idéia. Mas eu estou fazendo o jogo dela. Eu a olho do mesmo jeito. Não, talvez o meu olhar seja um pouco mais devorador. Mas também não é tão intrigrante quanto o dela. Ela está sentada sozinha. Com certeza está esperando alguém? Ou não? Estará ela como eu, uma pessoa solitária em um bar? Como posso saber? Eu daria tudo para entrar nos seus pensamentos agora. Tudo. Porque há alguns momentos que podem valer uma vida inteira. Esse é um momente desses. Mas eu não me aproximarei dela. Ela deve estar esperando alguém e eu não quero correr o risco de ser surpreendido por um outro cara. E nem gosto de mexer com mulheres comprometidas. Só que essa mulher, ela tem alguma coisa diferente. Ela parece saber mais do que todas as outras pessoas. Ela continua me olhando e ri enquanto olha, como se soubesse algum segredo meu ao qual eu mesmo ignoro. Será que bebi demais?
"Senhor, aquela senhora pediu para lhe entregar isso."
Hã? Como? Quem pediu? Aquela mulher? A minha admiradora nada secreta? Oh céus, onde isso vai parar? E que bebida é essa? Nunca vi nada igual, é azul-turquesa. E tem um bilhete, em papel cor-de-rosa. Nossa, uma mulher que anda com papéis para bilhetes cor-de-rosa na bolsa de mão. Vamos ver o que está escrito:
"Para fazer par aos seus olhos."
A bebida é boa, um pouco doce, parece laranja. Lembra um licor ao qual não me recordo o nome. Bem, ela é original. E meus olhos são dessa cor? Quer dizer, eu sei que eles são azuis. Mas são deste tom de azul? Será que até isso ela reparou milimetricamente? Talvez eu esteja lidando com uma detalhista desconhecida. Detalhista desconhecida. Gostei dessa expressão. D.D. Até dá para fazer sigla. Mas quem precisa de uma sigla para isso? E ela continua olhando. Depois somos nós, os homens, que não disfarçamos! Ela se veste bem. O roxo do vestido combinou com o tom moreno de sua pele. Está bronzeada de sol. Será uma rata de praia? E que argolas imensas! Valorizaram seu rosto. Será que daqui consigo ver seus sapatos? Ah, consigo. São prateados, da mesma cor da argola. Até sua roupa é diferente. Será que ela trabalha com moda? Pode ser. Fashionistas têm um olhar arrogante, como o dela. Mas o dela é só um pouquinho arrogante. Ela se levantou. Não é tão alta quanto eu imaginava. Eu realmente gostei do vestido dela. Alguma coisa na figura dela me lembra Audrey Hepburn, apesar de as duas não se parecerem nada fisicamente. O quê? Ela está vindo na minha direção? Não, isso não está acontecendo. Nossa, isso está acontecendo comigo? Sim, isso definitivamente está acontecenco comigo! Pelo visto, tenho sido um bom menino...
"Posso me sentar?"
Nossa, que voz! Um tom um pouco rouco mas absolutamente confiante:
"Fique à vontade."
"Qual o seu nome?"
"Nicolas."
"Muito prazer, Nicolas. Eu me chamo Alice."
"O prazer é todo meu, Alice In Wonderland."
"Já leu o livro?"
"Não, só vi o filme."
"Como a maioria das pessoas. Os dois são bons. Mas acho o filme alucinógeno demais para o público infantil."
"Um pouco."
"Escute, eu tenho 15 minutos até o cara com quem eu estou saindo chegar."
"É seu namorado?"
"Não, é apenas um cara com quem estou saindo."
"O que é aquilo que você me mandou para beber?"
"Curaçau. É um tipo de licor oriundo das Antilhas Holandesas, feito de cascas de laranja."
"Onde descobriu isso?"
"Na Holanda. Escute, eu posso lhe fazer algumas perguntas?"
"Claro que pode."
"Responda a primeira coisa que lhe vier à cabeça, não precisa ficar pensando numa resposta elaborada."
"Okay."
"Comprometido?"
"Não."
"Cerveja ou champagne?"
"Cerveja."
"Para qual time de futebol você torce?"
"Sociedade Esportiva Palmeiras."
"É de São Paulo?"
"Nasci lá."
"Estampa xadrez ou listrada?"
"Listrada."
"Seios ou bunda?"
Deus, o que essa mulher pretende com esse monte de perguntas aleatórias? Será algum tipo de jogo? É claro que é algum tipo de jogo. Mas eu estou pensando demais antes de responder essa pergunta. Justo essa, uma pergunta tão fácil de responder para mim:
"Seios."
"Beatles ou Rolling Stones?"
"Stones."
"Mick Jagger ou Keith Richards?"
"Jagger."
"Havaianas ou tênis Adidas?"
"Tênis Adidas."
"Ótimo, agora complete minha próxima frase."
"Diga."
"George Bush é..."
"Um idiota de marca maior!"
"Excelente. Você foi bem, de um modo geral. Tirando a parte do Palmeiras, todas as outras são aceitáveis."
"Por que tirando a parte do Palmeiras?"
"Porque o Palmeiras é o time equivalente ao Vasco em São Paulo. E eu odeio o Vasco."
"Flamenguista?"
"Não."
"Botafoguense?"
"Porque o Fluminense é sempre a última opção dada pelas pessoas?"
"Porque talvez seja o menor time do Rio..."
"Não é, mas de qualquer forma, é o meu time."
"Por que o Palmeiras é equivalente ao Vasco em São Paulo?"
"Porque é tetra-campeão, só venceu uma Libertadores, e tem o Corinthians como rival equivalente ao Vasco com o Flamengo no Rio."
"Mas o Corinthians também é tetra."
"Roubado."
"Como sabe tanta coisa de futebol?"
"Meu pai trabalha com isso. Sabe, eu gostei de você."
"Eu gostei mais de você."
"Duvido! De qualquer forma, daqui a cinco minutos o Dan vai chegar e eu quero estar esperando por ele. Então, vamos fingir que isso não aconteceu, está bem?"
"Por quê? E se eu quiser te ver de novo?"
"A vida é feita de encontros, embora haja tantos desencontros nessa vida."
"Vinícius de Moraes."
"Exatamente. Acredite nisso. Eu preciso voltar à minha mesa agora."
"Tudo bem."
Ela se levantou. Eu sabia que não seria tão fácil. Uma mulher linda e fascinante dessas não é fácil assim. O que você estava esperando? Que ela lhe convidasse para ir à um motel com ela? Só nos seus sonhos. Mas esse vestido realmente fica bem nela... ei, eu tenho uma pergunta a lhe fazer! Ela já se sentou de volta. E a qualquer momento o tal de Dan pode chegar. Será que é bonito? Deve ser. Por que tantas perguntas? Me senti como se estivesse num programa de entrevistas. Ou quem sabe, a situação foi outra e eu não me dei conta. Eu fui a presa. Isso é certo. Mas isso não está certo. Eu quem deveria conquistá-la! Eu quem deveria ter ido até a mesa dela! Só que eu estava assustado demais pela presença dela. Sim, assuma Nicolas, você foi a presa e ela foi a caçadora. E por que eu não consigo olhá-la novamente, como estávamos fazendo antes? Eu não estou com vergonha. Não posso estar. Ou estou? O que essa mulher que eu nunca vi fez comigo? Eu acho que vou embora...
"Senhor, aquela senhora pediu para lhe entregar isso."
De novo?! O que será que está escrito dessa vez?
"Ah, garçom, você pode trazer a minha conta?"
Mais um bilhete em papel cor-de-rosa. Tenho certeza que guardarei esses bilhetes. Certeza. Mesmo que eu odeie acumular papéis, esses são dignos de um destino decente. Vamos ver:
"Esse é o meu número. Me ligue quando quiser. Mas não ligue hoje. Nem amanhã. Beijo.
P.S. Luxemburgo no Palmeiras? Sei não..."
Nossa, e ela ainda faz comentários de futebol. Que mulher é essa? Deus, me diga, de onde essa mulher saiu? Ela não pode ser desse planeta. Ela deve ser de Urano. Ou de Saturno, que é um planeta espalhafatoso.
"Senhor, a sua conta."
Ah, a conta. O melhor é pagar, ir embora, chegar em casa e tentar entender o que foi isso. Mas eu queria saber o que ela faz. Vou escrever um bilhete. Mas eu não tenho um papel aqui. Eu tenho o papel da conta. Será que tem problema?
Eu estou de saída. Se você trabalhar com moda, passe a mão no cabelo no momento em que eu passar pela sua mesa.
Eu paguei e me levantei. Fiz uma horinha para dar tempo do garçom entregá-la. Um segundo depois o tal Dan chegou. Bonitão. Deve ter uns 40 anos quase. Mais velho que eu, então. E os tênis dele são Nike. Ela prefere os Adidas. Quer dizer, eu acho que prefere. Mas deve preferir mesmo. Se preferisse Nike, faria a pergunta usando tênis Nike, e não tênis Adidas. Vamos lá Nicolas, você está quase passando pela mesa dela. Olhe para ela. Olhe disfarçadamente. Apenas veja se ela passará a mão no cabelo. Agora, vamos, olhe. Ela passou a mão no cabelo! Ela trabalha mesmo com moda! Minha intuição estava correta ou o olhar dela que realmente tinha alguma arrogância? Tanto faz. Eu só sei que esses últimos momentos todos valeram uma vida.


p.s. nem um pouco apaixonada e ouvindo Amy Winehouse incessantemente.