"Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo..."

Friday, November 23, 2007

O amor vindo do mar e o amar no meio do sertão

(Imagem Ilustrativa: Ponta do Mel, RN)


"Eu quero amor.
Eu quero amar.
Eu quero o amor de Lisbela.
Eu quero o mar e o sertão."
(Los Hermanos)


Eles se olharam. E no instante seguinte, sentiram-se mais felizes que nunca. Ele vinha de longe, ela vinha de perto e ambos encontraram-se no meio do nada. O lugar se chamava Confins do Norte. Uma dessas tantas cidades pequenas do interior da Bahia. Estava mais que claro que aqueles dois eram forasteiros vindo para o sertão em busca de si próprios. E encontraram um ao outro antes de responderem à questões que tiram o sono de tanta gente. Quem deseja saber se Deus existe quando há um par de olhos castanhos ao alcance, esperando apenas ter seu olhar correspondido?
Ele citava Drummond. Ela era canhota. Ele fazia cinema e estava ali preparando um documentário. Ela só estava fugindo de um ano inteiro de trabalho comum e queria apenas viver intensamente o sol escaldante da caatinga. E dizia, nessa ordem, "que queria brilhar intensamente. Desejar intensamente. E conhecer todo o mundo intensamente." Ele às vezes andava por um lindo oceano inexistente só para poder se afogar em sua imensidão. Ela não tinha medo da solidão. Ele já tinha se hospedado em hotel cinco estrelas. Ela não acreditava em perfeição. Ele não acreditava em facilidade. E ambos mudavam de sentimento sempre que achavam necessário.
Ele lhe contou coisas sobre Truman Capote, Stanley Kubrick, Ingmar Bergman e Martin Luther King. Ela lhe contou coisas sobre suas encarnações passadas e a história de Exu, Ogum, Oxóssi e Xangô. Ele logo percebeu que ela era uma simples moça baiana e não teve dúvidas quando ela lhe contou que só tinha ido ao cinema uma vez, quando fora à Salvador. Vira um filme de luta, com o rapaz que namorava na época. Não gostou da história, mas gostou dos efeitos. Ele riu e absteve de falar de cinema, porque instintivamente iria entrar em detalhes sobre os movimentos, os diretores e as atrizes e isso a intimidaria. Ele não queria intimidá-la porque a falta de timidez daquela garota era a nuance mais encantadora de sua personalidade. Então, antes dele silenciar, ele lhe contou das ondas que surfava no mar, e ela pôs-se a falar de seus banhos de rio quando criança, de que não gostava tanto assim de carne e até já pensara em ser vegetariana, mas foi inibida por sua mãe, que lhe disse que isso era capricho de gente abestada. Ele falou que queria ser um grande cineasta um dia. Ela respondeu dizendo que estava em satisfeita em ser quem era. E que só pensava em ter um casal de filhos e um cachorro.
Conforme o tempo foi passando, ele percebeu que a realidade dela era bem diferente daquela mostrada nos livros de história e geografia. Ela percebeu que ele não tinha uma vida igual àquela dos moços bonitos da televisão. Eles passeavam de noite, porque ele não estava trabalhando e porque ela gostava das estrelas. Ela pedia que ele fechasse seus olhos e lhe dava um beijo daqueles de novela. Ele não percebia que era um beijo de novela (nem podia; ele não assistia novela) e gostava mesmo assim, especialmente porque ela tinha um gosto permanente de café com canela na boca. A menina era uma viciada em cafeína, que gostava do beijo dele porque tinha gosto de hortelã. O vício dele eram as balas de hortelã. E entre vícios e estrelas, os dois se beijavam, e rolavam no chão, extasiados em seus corpos, e ambos achavam os gestos um do outro únicos, de modo que ele gostava de como ela lhe tirava a camisa, e ela arrepiava quando ele lhe acariciava os cabelos, e o nascer do sol vinha sem que os dois se dessem conta.
Ele achava engraçado ela sentir ciúmes dele. Ela se divertia com a câmera fotográfica dele. Ele descobriu que ela lia Jorge Amado e relacionou seu gosto de canela com Gabriela, mas ela mesma lhe contou sem querer que o misturar canela no café era costume herdado da avó, aprendido quando criança. Ele queria ficar o tempo inteiro com ela, que gostava de conversar com os amigos dele que o ajudavam com o documentário. Ela ria do seu sotaque carioca, e ele o silenciava na boca dela. Eles se deixavam ser o que eram. E recebiam com bom grado todos os sorrisos um do outro, e todos os toques um do outro, e discutiam por coisas pequenas, então calavam-se e começavam a rir da corrida dos calangos.
Foi quando chegou a hora da partida. Ela voltaria para casa no caminhão do tio. Ele iria até Salvador para pegar o avião. Ela queria ser a aeromoça e ele queria ser o caminhoneiro. Ela queria ir para o Rio de Janeiro e ele queria ficar na Bahia. Não teve jeito. Ela voltou para o perto, e ele voôu até o longe. E mais de dez verões se passaram desde o verão do encontro. Ele já lançara dois documentários. Ela já tinha um filho e um cachorro. E quando surgiam essas tardes de memória fresca que volta e meia batem a porta, ele se lembrava de que amara no sertão, e de lá, ela pensava que tinha tido um amor que morava em frente ao mar.

(A cidade é fictícia. Se houver alguma com este nome, é coincidência. E o texto é dedicado pra Lu, minha amiga que não sabe se escolhe o mar ou o sertão. Te amo Luísa!)

1 Comments:

  • At 1:05 PM, Blogger Luisa. said…

    aaaai, que lindo!
    cara, te amo muito Anna!

    e entre o mar e o sertão, fico com os dois

    mais uma vez, me surpreendendo com os seus textos

     

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