"Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo..."

Wednesday, November 15, 2006

O canto das luzes coloridas

(Créditos da imagem: Getty Images, fotógrafo David De Lossy)

Ela chegou. Estava se sentindo um lixo. O vestido escolhido para a noite foi surpreendido por um ferro elétrico fora de controle, que deixou marcas provavelmente sem remoção em seu tecido azul-turquesa. O jeito foi usar o pretinho básico. Pensando bem, nos momentos em que se sente um lixo, nada melhor que um pretinho básico.
Ela circulou. "Nada de novo", pensou. E esta afirmação era verdade. Não havia nada de novidade naquela festa. Os rostos eram todos conhecidos e todas as músicas tocadas até o momento já eram conhecidas da estação de rádio favorita de seu irmão mais novo, que cismava em escutar música no último volume de seu quarto, que era vizinho ao dela.
Ela se sentou. Achou que era o melhor a ser feito. E permaneceu sentada durante uns longos 10 minutos, apenas observando com desinteresse a movimentação da festa. Naquele momento, se arrependia de ter ido. Mais não se surpreendeu com este pensamento. Sempre se arrependia de comparecer à festas de 15 anos. Aliás, este havia sido o principal motivo da decisão tomada alguns anos antes, após uma discussão de dias com a mãe: não iria realizar a sempre esperada pelas meninas, festa de debutantes. Entre todas as pequenas razões, a principal era o fato de não querer correr o risco de ir embora da própria festa antes dela acabar.
Ela pensou em ligar para o namorado, que não foi à festa com ela. Mas desistiu. Ele iria rir da situação em que ela se encontrava. Especialmente, por também ser um não-entusiasta de festas de 15 anos, ainda mais quando a decoração era toda de balões cor-de-rosa com lilás, e havia um grande mural para se escrever declarações à aniversariante.
Ela se levantou, foi até o bar e voltou ao seu lugar. Mas quando chegou à sua cadeira no canto privilegiado, com vista lateral para a pista de dança, teve uma surpresa: seu lugar estava ocupado por uma pessoa que se destoava bastante das outras. Ele tinha olhos castanho-esverdeados, usava um boá cor-de-rosa bebê ao pescoço e vestia um colete enfeitado com lantejoulas. Ao ver que uma menina o encarava, sorriu e perguntou:
_Oh, você estava sentada aqui?
A resposta que obteve foi positiva. Mesmo assim, não se intimidou. E falou:
_Bem, para você estar sentada, deve estar entediada com a festa. Então, eu lhe dou duas opções: arrume uma cadeira, sente-se ao meu lado e vamos conversar até a música parar de tocar ou vá embora querida, pois a sua cara emburrada está em contraste com as caras felizes dos semi-bêbados da pista de dança!
Ela também não se intimidou com a resposta. Procurou uma cadeira vazia, a levou até o lugar onde estava seu antigo assento e se sentou, esperando o menino falar alguma coisa.
Ele perguntou quais eram as razões dela estar se sentindo tão desconfortável numa festa onde 95% das pessoas chegam felizes e outros 99% retornam felizes à suas casas. Ela lhe explicou o incidente com o vestido, a ausência do namorado e sua teoria sobre festas de 15 anos.
Ele apenas balançou a cabeça e resmungou qualquer coisa. Menos de 1 minuto depois, fez um comentário, acompanhado de uma proposta, que para uns soaria interessante, e para outros, indecente:
_Sabe, também não estou gostando muito desta festa. Os adolescentes de hoje em dia acham que ficar bêbado aos 15 e rebolar até o chão é o máximo da transgressão. Coitados. Mal sabem que mais importante que transgredir é se divertir. Ou como dizem os americanos, "have a good time". Então... você quer fugir?
Desta vez, ela se impressionou com o comentário. Não esperava aquela proposta. Mas aceitou, sem nem pensar direito. E recebeu em troca a seguinte promessa:
_So, let's have the time of our lifes, pequena ruiva!!
O trajeto até o local de destino durou uns 15 minutos. E teve direito à trilha sonora. Que momento era sair correndo pelas ruas, ao lado de uma criatura totalmente colorida, que cantava a plenos pulmões David Bowie em sua fase glam-rock! Então, se viram em frente à um lugar cuja fachada chamava a atenção pelas luzes que saíam de dentro do recinto, tão intensas que chegavam à refletir na rua. Dava um pouco de medo abrir a porta e encarar aquelas luzes, que pareciam mais vivas do que muitas pessoas que passavam pela rua. Mas o medo passou assim que a porta se abriu.
Lá dentro estava um mundo paralelo. Um mundo onde todos eram coloridos. Um mundo onde a música que se ouvia não permitia que ninguém ficasse parado. Um mundo onde as luzes tinham vida própria. Ela estava se sentindo intimidada. Mas logo uma das criaturas coloridas veio em sua direção, e perguntou qual era seu nome:
_Laura._ foi a resposta
O seu companheiro de fuga e o ser colorido que havia feito a pergunta se entreolharam e disseram juntos:
_Bem vinda ao Canto das Luzes Coloridas, Laura!
E ela aceitou a recepção como um convite à pista de dança. Lá, se esqueceu da nota tirada no teste da faculdade, na discussão tida com a mãe pela manhã, da chateação com o namorado, do vestido azul que se queimou, de estar usando um pretinho básico, dos adolescentes irritantes que povoavam sua visão até poucos instantes atrás.
Lá, na pista de dança, se rendeu aos clássicos de Blondie e Abba, e às novas músicas "alegrinhas" feitas por um conjunto oriundo de Nova York, que eram fãs de Elton John e cantavam versos incentivando as pessoas à levarem suas mães para dançar(!!!).
Lá, Laura se esqueceu por alguns instantes de si mesma e dos problemas que a rodeavam. Ela simplesmente se rendeu ao balanço de seus pés e deixou a energia vinda das luzes que piscavam no globo invadir sua alma.
Bem mais tarde, por volta das 4h30 da manhã, chegou em casa, com um sorriso pleno no rosto. Talvez por ter se divertido como nunca em muito tempo. Talvez por ter dado seu número de telefone à Jack, o ser que lhe abordara ainda na entediante festa de 15 anos, e ter lhe obrigado a prometer que a chamaria para fugir outras vezes. Talvez pelo boá azul-turquesa que se encontrava em seu pescoço. Talvez pela lembrança de se sentir livre naquela pista de dança ainda estar em sua mente. Talvez por causa das luzes, que com certeza invadiriam seus sonhos, assim que ela deitasse na cama. Talvez por saber que as luzes estarão sempre no mesmo local, ao seu alcance. E que deve partir dela a iniciativa do próximo encontro com elas.
Não importa qual for o motivo, agora Laura sabe. As luzes coloridas estão sempre ao nosso alcance. E elas são emitidas através de nossos sentimentos reprimidos, muitas vezes, escondidos sob pretinhos básicos...


Conto inesperado (ao som de Scissor Sisters, que foi a inspiração para as linhas deste post)

2 Comments:

  • At 11:48 AM, Anonymous Anonymous said…

    Querida
    Quanto mais eu leio, mas fico embasbacada!
    Leia muito e escreva mais e mais!
    Beijos da sua maior fã!
    Lucia Helena
    sua mamãe

     
  • At 6:59 PM, Blogger Sylvia de Sá said…

    Nossa, que metáfora, hein!?
    Muito legal mesmo!
    Deixemos de lado o pretinho básico, sim!
    Eu mesma estou cansada desses rótulos, esteriótipos e tudo mais!
    Liberdade é o que precisamos!
    Liberdade de pensamento, de escolha... livres para sermos felizes, não importa o caminho que sigamos!


    Mas uma pequena observação: quando se trata de guarda-roupa, não dispenso meu pretinho básico! hehehe

    Beijo grande!

    Sylvia

     

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